Dostoiévski e Memórias do Subsolo

Fábio Nunes
3 min readMay 23, 2021

A leitura de Fiódor Dostoiévski é sempre contundente, e na obra “Memórias do subsolo” não é diferente. O livro é dividido em duas partes. A primeira, O Subsolo, apresenta-nos uma discussão filosófica aporética — uma filosofia disruptiva e contraditória, aonde ele enxergava que o ser humano antes de tudo, não é uma tecla de piano (uma coisa ordenada, seguindo uma lógica única). E que o homem se fosse posto em um teclado de piano, rebelar-se-ia em prol da sua liberdade ou mutilando-se para uma autoafirmação de que se está vivo para além de um cálculo matemático.

O Homem do subsolo é um persona cheio de estigmas e controvérsias: ora ele se diz uma coisa, e em outro momento ele se desdiz sobre a mesma coisa. Ele mesmo narra em seu primeiro parágrafo:

“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (…) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva.(…) sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.

Nesse primeiro parágrafo conseguimos perceber a tônica irônica, pessimista e trágica que o resto da obra irá desenvolver durante a narrativa e a qual ele mesmo se autodenomina como um paradoxalista: é algo também que se percebe e permeia por todo o plano de estilo de narrativa.

O homem do subsolo chega a afirmar que a história da humanidade é tudo, menos razoável: A história é um banho sangue, tédio e vaidade. A história humana também é a aderência de milhões e milhões de pessoas à guerra, aonde são mortas feito moscas, em que supostamente lutam por um bem maior, mas que na verdade não passa de um extravasamento da forte tendência da humanidade à violência e que todas essas ações vão de encontro à um caráter que seja idôneo, de uma vontade e posse própria da personalidade, e que essa vontade vai para além de um cálculo matemático de uma tabela logarítmica.

A Segunda Parte, Sobre a Neve Molhada, traz para o leitor uma narrativa que funciona como uma aplicação práticas das questões filosóficas que são levantadas na primeira parte. O Homem do subsolo encarna em si o princípio de contradição, da autoflagelação, de um indivíduo que chega a ter o amor do próprio cárcere, de um indivíduo que não consegue desvencilhar-se de suas tendências mórbidas a se aferrar de uma dor conhecida — que por mais que seja um dor atroz, é a que ele conhece.

E Dostoiésvski então termina o livro, através do homem do subsolo:

“… não será melhor encerrar aqui as ‘Memórias’? Parece-me que cometi um erro começando a escrevê-las. Pelo menos, senti vergonha todo o tempo em que escrevi esta novela: é que isto não é mais literatura, mas um castigo correcional. (…) um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e… tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida. (…) Sei que talvez ficareis zangados comigo por causa disto, e gritareis, batendo os pés: ‘Fale de si mesmo e das suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer ‘todos nós’. Mas com licença, meus senhores, eu não estou me justificando com este todos. E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez… (…) Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. (…) Mas chega; não quero mais escrever ‘do Subsolo’ ”

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