Albert Camus e A Peste

Fábio Nunes
9 min readApr 29, 2020

Seguindo pelo Mito de Sísifo e O Estrangeiro, agora finalizo mais uma leitura dentre as obras de Albert Camus. A leitura é completamente estarrecedora, uma vez que você repara e consegue traçar paralelos que descrevem muito bem os tempos atuais, principalmente devido a pandemia que nos acomete.

A peste é uma novela que foi pública em meados de 1947, período pós guerra mundial — onde um mundo estava completamente imerso numa melancolia e angústia descomunal. O fio condutor desta novela dá-se através de um vírus que se dissemina de forma incontrolável de animais(ratos) para humanos — bem como em outrora conhecida como Peste Negra. O livro traz consigo uma narrativa a partir do ponto de vista do Dr. Bernard Rieux, o qual vai descrevendo os sucessivos e subsequentes acontecimentos catastróficos de uma epidemia que acomete a cidade de Oran, situada na costa de Argélia (que na época era uma colônia francesa).

Em primeiro momento Rieux atem-se em descrever a cidade a qual passara os acontecimentos, e de forma consequente também vai trançando uma linha de características as quais o concidadãos compartilham entre si: são apenas pessoas normais, com vida ordinárias baseada em dinheiro; Mal se dão conta de que estão vivos devido à toda monomania em que a vida de grande centro urbanos traz consigo.

“Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma localidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa cidade tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Nossos concidadãos trabalham muito apenas para enriquecerem…, outros para somente sobreviver. Os homens e as mulheres se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois… O mais original é a dificuldade que se tem de morrer. O doente fica muito só dada a importância dos negócios e a qualidade dos prazeres. Logo, Oran é uma cidade inteiramente moderna…”.

Logo as coisas vão se tornando cada vez mais densas. Certo dia aparece um rato morto, e assim dia após dia, o número de ratos vai se tornando cada vez maior e até que num golpe de estranheza todos os ratos desaparecem a cidade. Os cidadãos logo acusam as autoridades de não está fazendo seu trabalho em remover os ratos rápido o suficiente. Os ratos são removidos e então sobre a cidade paira novamente um ar de normalidade, exceto ao Dr. Rieux, que sabia, dada a sua experiência em pestes e a forma de como ela dissemina-se, que aquilo poderia ser só o começo algo ainda maior.

A seguir a primeira pessoa morre, e então Rieux descreve: “A imprensa tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada a respeito dos humanos. É que os ratos morrem na rua e os homens em casa. E os jornais só se ocupam das ruas.”

E assim, morte após morte, as pessoas vão deixando de ter uma indenidade e logo vão se tornando números, e então a descrição dos sintomas e das dores que lhe acorriam é realizada de forma sem piedade. A administração pública tenta adiar o inadiável, esconder o flagelo, até que não seja mais possível fazê-lo e a cidade inteira entra em quarentena de uma hora pra outra, como se fosse sitiada e os isolamentos são instituídos.

Camus escreve: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: ‘Não vai durar muito, seria idiota’. E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos.

Aqui podemos discutir que Camus não tá escrevendo sobre uma peste em específico, porque pare ele, em sua filosofia do absurdo, todos nós — mesmo sem saber — já estamos vivendo uma peste: é uma doença disseminada, silenciosa e invisível que pode matar qualquer um de nós a qualquer momento e destruir nossas vidas que até então achávamos que era sólida. E nisso qualquer flagelo que assola a humanidade sempre traz consigo o mesmo ensinamento, de que somos seres vulneráveis a ser exterminados aleatoriamente, mesmo que por um acidente ou pelas ações de nossos semelhantes. Camus então nesse ponto expõem-nos à filosofia do Absurdo.

O comportamento dos concidadãos então vai se moldando a essa forma de pensamento. Logo quando os portões da cidade são fechados, pelo isolamento, os laços de amor e amizade estreitam-se, numa espécie de exílio a que todos são confinados. “A partir de então, reintegrávamo-nos à nossa condição de prisioneiros e estávamos reduzidos ao nosso passado e ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo renunciava ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam… Assim experimentavam o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e exilados, vivendo com uma memória que não servia para nada… Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro.”.

O exílio também trouxe consigo uma outra consequência, todos agora experimentara um encurtamento social e que de certa forma, nivelará as pessoas. “Porque a peste se tornava assim o dever de alguns, ela surgiu como realmente era, isto é, o problema de todos.”

No entanto, os concidadães ainda insistiam em negar o que lhes acometia. Mesmo com alguém em algum lugar, morrendo em agonia em um quarto qualquer, as pessoas continuavam a imaginar que aquilo não iria lhe ocorrer. Mas nunca pode haver segurança — “A peste, é preciso que se diga, tirara de todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes… Ao mesmo tempo, a peste suprimia juízos de valor”. De tal forma que, quando “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste, os sentimentos eram compartilhados por todos”. E é essa dor que devolve o valor e a força aos sentimentos. “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu — essa era a frase que resumia a única esperança possível.”.

A vida é um hospício, nunca um hospital.

A solidariedade vai surgindo como um fio de esperança a qual os concidadãos vão tentar se agarrar pra enfrentar todo esse absurdo a qual todos estamos sujeitos. A solidariedade é representa por pessoas como do Dr. Rieux, um ateu e que trabalha incansavelmente contra a morte, ou pelo menos diminuir o sofrimento das pessoas em sua volta. Mas ele, em suas palavras, não é nenhum santo, e em uma das mais centrais linhas do livro ele diz: “Essa coisa toda não é sobre heroísmo. É sobre decência. Pode parecer uma ideia ridícula, mas a única maneira de combater a praga é com decência.”. Aqui o heroísmo toma um papel secundário perante a necessidade de luta pela felicidade, e “o hábito do desespero é pior do que o próprio desespero em si.”

Dentre a todos esses acontecimentos emerge um Padre católico chamado de Paneloux, que faz o antagonismo e o contraponto de pensamento ao personagem principal Rieux. No princípio quando se pensava que era uma doença qualquer, a religião tinha um prestígio muito grande, os sermões do Padre Paneloux eram extremamente concorridos e ele convocava todos a ser arrependerem, a buscarem o perdão divino e que tudo aquilo era uma punição divina por depravação. Mas então quando acontece a morte sob um intenso sofrimento e agonia do pequeno filho do juiz Othon, se dará a ruptura de pensamentos entra ambos. Dr Rieux rechaça esse pensamento de que a peste é uma punição divina — isso seria imaginar que o universo fosse moral ou houvesse algum desígnio. O Sofrimento é inteiramente distribuído aleatoriamente, não faz sentido é não é uma força ética, é simplesmente absurdo e é a coisa mais gentil que se pode dizer sobre isso.

Paneloux diz a Rieux: “Isto é revoltante, mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender”. Retruca-lhe Rieux: “Eu vou recusar até a morte esta criação divina em que as crianças são torturadas”, numa reprodução do diálogo sobre a revolta, entre Aliocha e Ivan Karamázov.

Surge Tarrou no decorrer da novela. Outro personagem, o qual expressa sua solidariedade e busca sua santidade através de suas ações, mesmo sem fé e sem Deus. Ele era um estrangeiro revoltado que atua lado a lado com Rieux, criando brigadas sanitárias. “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as forças contra a morte, sem erguer os olhos para os céus, onde ele se cala.”

Em determinado momento ele confessa que a epidemia não lhe ensinava nada.

“Sei de ciência certa que cada um traz dentro de si a peste, porque ninguém no mundo está isento dela. O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, a pureza, é um efeito da vontade, vontade que não deve jamais se deter. O homem direito é o que não infecta ninguém, que tem o mínimo de distrações possíveis. É bem cansativo ser-se empestado, mas é ainda mais cansativo não se querer sê-lo… pois, é necessário, tanto quanto possível, permanecermos fora do flagelo. Eu me coloco no lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. Por meio delas posso procurar a paz.”

Com tudo isso dito, podemos então observar que A Peste é uma novela sobre a solidariedade humana, principalmente aquela que surge nos tempos mais difíceis pelas quais a humanidade possa imaginar-se, e com isso em mente, pode-se dizer que o livro é profundamente humanista feito por quem se recusa a aceitar a injustiça do Universo. No silêncio eterno dos espaços infinitos ouvem-se somente os gritos das vítimas. Os homens devem permanecer uns ao lado dos outros quer por egoísmo, quer por santidade, mas tomando consciência dos sentimentos essenciais de amor, amizade e solidariedade. Uma solidariedade que se traça como uma ponte entre moribundos e condenados. A mesma solidariedade que une os homens em perigo e que se desfaz como bruma em tempos de paz.

Eventualmente, depois de mais de um ano a peste começa cessar, o isolamento é suspenso, e os ratos começam reaparecer, e então a cidade começa a celebrar uma efêmera volta à normalidade. “Pode-se dizer que, a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste havia terminado.” Entretanto, “todos os cidadãos estavam de acordo em pensar que as comodidades da vida passada não voltariam e que era mais fácil destruir que reconstruir”.

Mas não é exatamente assim que Albert Camus, através de Rieux via. O médico que sabe que embora aparentemente a peste tenha sido derrotada, sempre haverá outras pestes, e assim esse livro não seria de uma crônica definitiva. Enquanto Rieux ouvia os gritos de alegria que pairavam sobre a cidade de Oran, ele lembrava que essa alegria estava sempre sob ameaça. E com isto podemos perceber a tamanha perspicácia tinha sobre a natureza humana e uma vulnerabilidade fundamental que há em nós e é que quase insuportável de lembrar.

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